publicado no jornal Estado de Minas – Caderno Pensar em 05/07/2003
O olhar é mais importante do que o falar. O último filme de Fábio Carvalho, O General, é um convite à reflexão. É uma obra difícil para um espectador mediano acostumado com a decupagem clássica hollywoodiana, mas instigante para os apreciadores de um cinema reflexivo e inventivo. Fábio Carvalho retoma a tradição do cinema feito em Belo Horizonte, que é a de discutir e revelar as entranhas da cidade e de seus habitantes como um painel multifacetado de personagens poéticos e, ao mesmo tempo, desajustados. O seu média-metragem Conversando com Bardem já prenunciava esse tipo de abordagem.
|
Lola Mendes |
O texto de abertura é de Carlos Drummond de Andrade, os poemas são de David Neves, falados por Carlos Reichembach, a ligação dessas três personagens são ingredientes dessa modernidade buscada.
Temáticas do cinema da década de 60 voltam como se fosse uma viagem no tempo e no espaço. O bar, mais uma vez, faz parte da geografia e da cultura desse novo cinema mineiro. É, outra vez, o local de enclausuramento, o lócus da solidão, das solidões compartilhadas, do tédio. A cena dos três amigos no banheiro é emblemática e trágica. “É melhor morrer de vodca do que morrer de tédio”, a frase é de Maiakovski e chave para o deciframento de partes do filme.
A personagem dançando representada por Ingra Liberato lembra o filme Pastores Desavisados, de Ricardo Teixeira de Salles, quando Marilena Martins dançava um balé etéreo, repetitivo e sem perspectivas. Aqui, agora, quem dança com ela é Paulo César Saraceni, com o letreiro “o cinema nasceu mudo”, reforçando mais uma vez a não necessidade da fala.
|
Isabel Lacerda |
Retoma, ainda, os filmes de José (Zezinho) Sette de Barros,
Goeldi,
Um Filme 100% Brasileiro, com o mesmo Guaracy Rodrigues, que, no filme de Zezinho, faz o cicerone de Blaise Cendras em sua visita ao Brasil; no
General, é um personagem lunático, embevecido com as menininhas dos bares da cidade. Guará é um capítulo à parte. Seu olhar inquisidor, sem nada dizer, mas dizendo tudo, vale o filme. Que olhar é esse, procurando aquele belo horizonte perdido? Outra referência é o Bang-Bang de Andrea Tonacci, nessa busca de dissecar e analisar a cidade, com o diálogo/monólogo de Milton Gontijo e Pereio, onde as pessoas falam e ninguém escuta. No
General, o mendigo, vivido magnificamente por Ronaldo Brandão, retoma a questão: discute ética e moral com um cidadão de terno (Neville d`Almeida), presumidamente um político que se nega a olhar e a ver o povo, cada um segue com seu monólogo. Os personagens se sucedem; o amolador de faca com seu canto triste e ritmado, os funcionários da SLU andando despreocudamente pela praça Raul Soares, sem rumo e sem direção, a garota da praça que tenta tocar um solo de flauta, mas desiste por total falta de inspiração. São gestos inúteis, repetidos sem sentido.
|
Anna Maria Nascimento Silva |
O General é, sobretudo, um filme musical, as sugestões produzidas pela música nos levam a caminhos ainda não percorridos, induzindo situações que não são aquelas mostradas pela imagem, mas sugeridas pelo som. A sequência da mulher nua com charuto, pontuada por uma música melodramática, muda o sentido da imagem, tirando a conotação erótica e sensual da cena, cortando para um insert do filme
Suzana, Carne y Demonio, de Luís Buñuel. Outro momento tocante é Kimura Schetino, vestido com traje a rigor, com toda pompa e circunstância, tocando na gaita
Aquarela do Brasil e terminando com o som de uma bandinha desafinada e Guará olhando e sendo olhado, sempre em silêncio.
8 e Meio de Fellini é intercalado várias vezes durante o filme, até que, em um determinado momento, Guará fala de sua paixão por Marcelo Mastroianni e Claudia Cardinale e uma mão acaricia o filme na tela da televisão. É uma relação amorosa entre o diretor e seu objeto. Guará brincando com as atrizes Isabel Lacerda e Eleonora Mendes saiu diretamente de um filme de Fellini.
Fábio Carvalho não esquece de outro diretor cultuado pela geração de 60, John Cassavetes, presente com o filme Faces. O seu compromisso com o cinema é tão grande que não se preocupa em momento algum em agradar ou desagradar ninguém. É um poema de amor a Belo Horizonte, uma cidade estranha, esquisita mesmo, mas é aqui que vivem estes personagens que transitam por ela. A longa sequência final mostra uma janela como se fossem diversos fotogramas de uma mesma paisagem, Belo Horizonte múltipla, poética, patética e cômica. E esse é o seu olhar comprometido com um modo diferente de mostrar e ver as coisas. O General não é um filme de público, mas, com certeza, provocará número infindável de discussões.
Algumas pessoas com quem convivo dizem que para um filme dar certo precisa ser comunicativo, estar sintonizado com o mercado, agradar ao público, em primeiro lugar. E onde fica o prazer do fazer cinematográfico? Da experimentação? Cinema deve ser brincadeira, jogo lúdico, embuste, enganar o público, indicar caminhos que levem a pistas falsas, construir personagens misteriosos, reverter à culpabilidade, indiciar inocentes. Tudo isso pode ser Hitchcock ou David Lynch. Por isso são muitas vezes execrados e incompreendidos pela crítica, porque não se levam a sério. Cinema, sobretudo, deve ser uma paixão e um prazer para quem faz.
Fotos de Lincoln Continentino.